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Princípios Antrópicos
(Palestra do Mês)

Informaçãorecente proveniente da sonda Galileu indicando a possível presença de matéria orgânica nas luas Calisto, Europa e Ganimedes de Júpiter, a descoberta pela mesma sonda do campo magnético de Ganimedes e ainda a algo polémica evidência da presença de nanobactérias no meteorito ALH84001 proveniente de Marte descoberta por David Mckay e colaboradores no verão de 1996, relançam, talvez da forma mais concreta de sempre, a discussão sobre a origem da vida e biologia extraterrestre, a chamada Exobiologia. Às descobertas acima mencionadas, juntam-se naturalmente às dos primeiros planetas extra-solares orbitando em torno da 51 Pegasus por Michel Mayor e Didier Queloz do Observatório de Genebra em 1995, no ano passado pelos americanos Geoffrey Marcy e Paul Butler orbitando ao redor da 47 Ursa Maior e 70 da Virgem e muito recentemente de um outro em torno da ρ Coronae Borealis por Robert Noyes e colaboradores.

Todas estas descobertas indicam que estamos diante dos primeiros elementos para se iniciar uma discussão verdadeiramente científica acerca da generalidade do fenómeno da vida e talvez mesmo de uma elucidaçãodos problemas relacionados com a sua origem e das condiçõescósmicas para o seu aparecimento. Do ponto de vista astronómico, a presença de matéria orgânica não constitui por si um facto inédito, uma vez que estruturas orgânicas tão complexas como amino-ácidos já foram detectados por meio de estudos espectrais da poeira interestelar e também em meteoritos carbonáceos, como por exemplo o meteorito caído em Murchison na Austrália em 1969 e que, surpreendentemente, contém essencialmente os mesmos amino-ácidos e em proporçõessemelhantes aos produzidos na célebre experiência de Stanley Miller e Harold Urey. Como é bem conhecido, estes cientistas "recriaram" no início dos anos 50 as condiçõessupostamente existentes na Terra há 4 mil milhões de anos, num frasco contendo água, hidrogéneo gasoso H2, amónia CH3 e metano CH4 na ausência de O2, condiçãoentendida como essencial por Alexander Oparin e John Haldane já nos anos 30, e para o qual energia era fornecida por meio de descargas eléctricas.

As recentes descobertas acima mencionadas vêm relançar, trazendo novos elementos, a bastante bem conhecida dicotomia entre as teorias sobre a origem da vida: Emergência na Terra a partir de condiçõespré-bióticas ou Panspermia Cósmica (ocasional ou dirigida). Se, por um lado, a experiência de Miller-Urey e as que a sucederam demostraram que amino-ácidos podem ser obtidos a partir de condiçõesabióticas desde que o ambiente e consequentemente a atmosfera primitiva fosse suficientemente redutora, isto é, livre de oxigênio gasoso O2 (hipótese ainda não estabelecida solidamente do ponto de vista geofísico), por outro lado, nas mesmas condições, a síntese de ADN e ARN e proteínas nunca foi demonstrada. No ambiente celular, ADN e ARN, moléculas sobre as quais jaz o onus da operacionalidade dos mecanismos de hereditariedade a nível molecular e consequente evoluçãobiológica, regulam a síntese de proteínas segundo o "dogma central", nas palavras de Francis Crick, ADN -> ARN -> Proteínas, onde as setas indicam o processo de síntese.

Esta síntese exige, contudo, entre outros factores específicos, a presença de proteínas com propriedades de catálise, as enzimas. A descoberta das ribozimas, enzimas compostas de ARN, por Sidney Altman e Thomas Cech em 1983, veio parcialmente resolver esta questão, e apoiar a hipótese do "Mundo ARN" de Francis Crick, Leslie Orgel e Carl Woese proposta no final dos anos sessenta: a ARN foi a precursora das macromoléculas bióticas vitais e foi também ela mesma a catalizadora das reacçõesnecessárias para a sobrevivência e reproduçãodos precursores primitivos da vida na Terra. Tal hipótese resolve o problema do "ovo e da galinha", porém resta ainda por ser explicado como a ARN auto-replicante foi criada.

Mesmo considerando as hipóteses mais plausíveis para a formaçãoda molécula de ARN, assumindo que os nuclídeos na ARN se formaram através de reacçõesquímicas que ligaram açucar ribose com bases de ácidos nucléicos e fosfato e a partir destes ribonuclídeos por meio da união espontânea de polímeros, alguns dos quais com propriedades de auto-replicantes, esta cadeia de eventos nunca foi experimentalmente confirmada e parece mesmo inverosímel dada a improbabilidade de se satisfazer todas as condiçõesnecessárias para a síntese fortuita do ARN a partir dos amino-ácidos da sopa primordial. Também as hipóteses alternativas, que invocam as propriedades catalíticas de superfícies, tais como argilas cristalinas segundo Graham Cairns-Smith, pirites segundo Günther Wächterhaüser, ou compostos sulfurosos que, segundo De Duve, poderiam dar origem às unidades de ribose ou alguma forma primitiva de ARN, estão ainda longe de responder às questões mais fundamentais do cenário ARN. Contudo, desenvolvimentos muito recentes devidos a Jack Szostak e David Bartel, que demonstraram no ano passado a viabilidade de moléculas de ARN auto-replicantes podem ser obtidas por meio da ligaçãocasual de nuclídeos e das suas propriedades catalíticas, indicam que este cenário não está ainda totalmente excluído.

Alternativamente, existe a hipótese que a vida apareceu inicialmente fora da Terra e, por força do acaso, aqui chegou posteriormente, segundo a proposta original do químico sueco Svante Arrhenius no seu famoso livro "Worlds in the Making" de 1908 e mais recentemente, pelo astrónomo Fred Hoyle e Chandra Wickramaringhe que vêm defendendo que a queda de material orgânico e microrganismos acontece hodiernamente. Este último facto é naturalmente por muitos constestado. No que se refere a formas mais avançadas de vida, já nos anos 40, o bem conhecido prémio Nobel de física Enrico Fermi invocava a ausência de manisfestaçõesinequ/ii vocas da presença de vida extraterrestre como um argumento contra a existência desta, assumindo que, se a vida fosse um fenómeno relativamente comum, então deveriam existir muitissímas civilizaçõesem condiçõesde se manifestar. Mais recentemente Frank Tipler argumentou que a forma mais eficiente de investigar sistematicamente acerca da presença de vida seria por meio de sondas com programas de auto-reprodução, as chamadas máquinas de von Neuman, e que o facto de não existirem vestígios destas máquinas enviadas por civilizaçõesmais avançadas indica fortemente a inexistência destas. Contudo, apesar destes argumentos, a ideia vem sendo repetidamente discutida na literatura. Por exemplo, Crick e Orgel sugeriram em 1973 que o aparecimento da vida na Terra se deveu ao envio deliberado de microrganismos tais como cianobactérias (algas azuis-verdes) por uma civilizaçãomais avançada. No ano passado, por exemplo, Secker, Lepock e Wesson argumentaram que microrganismos podem muito possívelmente "navegar" (e sobreviver) através das grandes distâncais interestelares sendo disseminados pela pressão da radiaçãoelectromagnética de origem estelar.

É evidente que a hipótese da Panspermia Cósmica relega o problema da origem da vida para outros sítios no Universo onde supostamente as condiçõesforam mais favoráveis do que as reinantes na Terra há cerca de 4 mil milhões de anos e claramente tal possibilidade empresta ao problema da origem da vida um sentido cósmico. Neste contexto, parece mais natural discutir-se as condiçõescosmológicas, em oposiçãoàs locais, compatíveis com o aparecimento da vida.

Naturalmente, uma limitaçãoinerente ao problema da origem da vida é a dificuldade de se testar as teorias propostas e mesmo encontrar na Terra, dada a radical transformaçãoda sua da crosta pela tectónica, vestígios que seguramente apoiem uma teoria em detrimento das demais. Esta situaçãopode contudo, ser completamente alterada com a intensificaçãoda investigação.

Na cosmologia moderna a discussão das condiçõescósmicas para o surgimento da vida está associada aos chamados Princípios Antrópicos. Porém, antes de os enunciar, é necessário discutir os acontecimentos mais marcantes na evoluçãodo Universo e que estão crucialmente ligados ao problema da vida. Logo após o Big-Bang (supostamente 10-35 segundos após o Big-Bang), que aconteceu entre 13 e 15 mil milhões de anos atrás, evidências diversas apontam que o Universo passou por um período de expansão extremamente acelerada denominada inflação, aproximadamente quando as interacçõesfundamentais da natureza (interacçõesnuclear forte, electromagnética e nuclear fraca) começaram a se diferenciar. Posteriormente, aproximadamente entre os primeiros segundos até os primeiros minutos após o Big-Bang, ocorreu a síntese de He4 (23%, aproximadamente), He3 (10-3 %), Deutério (10-3 %) e Li7 (10-8 %) a partir do hidrogénio primordial, o qual termina como o elemento mais abundante no Universo com 76% da massa total da matéria convencional observada (1). As flutuaçõesde densidade primordiais geradas aquando da inflaçãoderam origem, nos primeiros milhares de milhões de anos após o Big-Bang, às galáxias e posteriormente às estrelas. Foi no seio destas últimas que a síntese dos elementos mais pesados foi gradualmente sendo levada a cabo a partir do H e He4 primordiais e os elementos produzidos foram finalmente ejectados para o meio interestelar nos estágios finais da evoluçãoestelar quando da explosão de Novas ou Supernovas. Assim, a matéria prima do que viriam ser os planetas, os seus satélites e finalmente a vida originou-se inicialmente no processo de síntese nuclear no seio do plasma cosmológico primordial e posteriormente no interior das estrelas.

Contudo, um ponto importante é que o resultado destes processos são fortemente dependentes das características intrínsecas das interacçõesfundamentais da Natureza. Por exemplo, se a constante de Newton da gravitaçãouniversal assumisse um valor muito superior, então o Universo provavelmente colapsaria logo após o Big-Bang sem que houvesse tempo para que ocorresse a síntese primordial de elementos e o aparecimento da vida. Se a constante de acoplamento das interacçõesfortes e fracas fosse diferente, a nucleosíntese primordial de elementos não ocorreria e no interior das estrelas não seriam atingidas as condiçõesnecessárias para o funcionamento prolongado dos ciclos que dão origem ao carbono e o oxigénio. Na verdade, o ciclo do carbono, elemento tão fundamental para a vida, requer que as reacçõesnucleares que acontecem no interior das estrelas 3He4 -> C12 + Energia e 2He4 + Energia -> Be8 e He4 + Be8 -> C12 + Energia sejam ressonantes, isto é, especialmente prováveis para intervalos bem definidos de energia, e que contráriamente a reacção C12 + He4 -> O16 não o seja, facto este que pode, emúltima instância, ser atribuído aos valores das constantes de acoplamento das interacçõesforte e electromagnética. Consideraçõessemelhantes poderiam também ser tecidas para outras constantes da Natureza. Por exemplo, a famosa constante cosmológica introduzida por Einstein nas equaçõesdo campo gravítico em 1918 não pode ser arbitráriamente grande, sob pena de inviabilizar a formaçãode estruturas no Universo, etc. Assim, se as constantes fundamentais da natureza fossem alteradas relativamente umas às outras, o Universo seria completamente diferente e,

em particular, possívelmente estéril. Estas observaçõesconstituem a base dos chamados Princípios Antrópicos, que podem ser essencialmente sintetizados através da seguinte questão: Estão as leis da física condicionadas e viabilizadas pelo aparecimento da vida no Universo? Esta intrigante inversão do raciocínio usual de que a vida requer condiçõesfísico-químicas favoráveis ao seu surgimento, tem várias formulaçõescom grau crescente de radicalização. A versão fraca de Robert Dicke (1957) (Princ/ii pio Antrópico Fraco) afirma:

Os valores observados das grandezas físicas não são arbitrários, mas restritos de modo a serem espacialmente compatíveis com a evoluçãosustentada da vida, e temporalmente consistentes com a evoluçãobiológica e cosmológica de organismos vivos e de seus nichos;

Brandon Carter, sugeriu em 1974 uma versão forte (Princípio Antrópico Forte):

O Universo deve necessáriamente conter vida.

Por sua vez, John Wheeler propôs, em 1977, a sua versãoparticipativa (Princípio Antrópico Participativo), fortemente inspirada no problema da medida na mecânica quântica, a teoria física que rege os fenómenos a pequenas escalas:

Observadores são necessários para a existência do Universo;

(1) Através dos dados observacionais acredita-se que a dinâmica do Universo é dominada por matéria de natureza desconhecida, e que por não emitir radiaçãoelectromagnética detectável é designada por "matéria escura".

(continua no próximo número)

Prof. Dr. Orfeu Bertolami



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