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Huygens mostra novo panorama de Titã

  No passado dia 14 de Janeiro a sonda europeia Huygens desceu com sucesso em Titã, enviando as primeiras imagens nítidas da superfície da maior lua de Saturno. Este é um acontecimento que ficará na história da exploração espacial porque tem, ao mesmo tempo, um significado científico e simbólico só comparável ao da chegada das primeiras missões soviéticas e americanas a Vénus e Marte.

A superfície de Titã vista pela sonda Huygens em 14 de Janeiro. A cor foi ajustada a partir de imagens obtidas a diferentes comprimentos de onda de forma a simular o que veria o olho humano nas mesmas condições. Cortesia: ESA/NASA/JPL/University of Arizona.
  O sucesso da Huygens mostra, antes de mais, mesmo para quem não se interessa pelos resultados científicos da missão, ser já possível aos seres humanos atingir o sistema de Saturno e explorar por meio de engenhos não tripulados esses corpos que distam de nós 10 vezes a distância da Terra ao Sol. Para a Europa, trata-se de uma enorme realização técnica a nível de engenharia, operação e coordenação das inúmeras actividades necessárias para levar a bom termo uma missão da envergadura da Huygens. Significa também, desde a entrada da sonda atmosférica da missão Galileu na atmosfera de Júpiter em 1995, o duplicar do nosso alcance no Sistema Solar em apenas 10 anos. E significa por fim, se nos lembrarmos que a Cassini-Huygens é um esforço conjunto da NASA, da Agência Espacial Europeia e da Agência Espacial Italiana, o sucesso da cooperação internacional como a única maneira de explorarmos essa zona do Cosmos mais próxima de nós que é o Sistema Solar.
  Desde a sua descoberta por Christiaan Huygens em Março de 1655, Titã permaneceu um dos objectos mais enigmáticos do Sistema Solar. Foi sobrevoado em 1980 e 1981 pelas sondas Voyager, mas estas não conseguiram observar a superfície, apenas um globo alaranjado e uniforme onde não se conseguia ver nenhum detalhe. A cor alaranjada é consequência de numerosas partículas em suspensão na atmosfera que dispersam a luz principalmente nos comprimentos de onda do vermelho e do amarelo.
  A atmosfera é composta por cerca de 98% de azoto e 2% de metano.A bruma é o resultado de uma cadeia complexa de reacções químicas que começa com a divisão destas moléculas pela luz ultravioleta do Sol (fotólise) e por electrões energéticos da magnetosfera de Saturno, gerando moléculas cada vez maiores e mais complexas. Estas moléculas, hidrocarbonetos formados por longas cadeias de átomos de carbono e hidrogénio, formam agregados com dimensões da ordem de 0.1 micrómetros, e estes, por sua vez, juntam-se entre si formando agregados maiores. Todas estas partículas, muito semelhantes ao smog que observamos na poluição das grandes cidades, formam a bruma. Elas são transportadas pelos ventos na atmosfera e são essenciais para compreendermos a meteorologia de Titã.

Mosaico de três imagens mostrando uma rede de drenagem, provavelmente associada a rios de metano. A zona branca à direita poderá ser névoa de metano. Cortesia: ESA/NASA/JPL/University of Arizona.
  Tal como a Terra, o eixo de rotação de Titã está inclinado relativamente ao plano da órbita, o que provoca uma variação da energia recebida por cada hemisfério ao longo do ano. Actualmente é o hemisfério Sul que recebe mais energia do Sol, sendo aí Verão. A energia disponível é convertida em correntes de ar ascendentes onde as condições favorecem a formação de nuvens. Uma das primeiras imagens da sonda Cassini mostrava nuvens próximas do pólo Sul, confirmando o que já se suspeitava com base em observações a partir da Terra.
   Embora o trabalho de análise dos dados ainda esteja a decorrer, já podemos traçar um balanço dos principais resultados da missão Huygens.A sonda transportava a bordo seis instrumentos destinados à exploração da superfície, à caracterização físico-química da atmosfera e à medição dos ventos. O instrumento DISR (Descent Imager and Spectral Radiometer) foi um dos mais importantes. Composto por um conjunto de 13 sub-instrumentos, incluindo três câmaras e um espectrógrafo, deu-nos não só as imagens que vimos da superfície, mas também espectros. Um espectro é como uma radiografia que mostra o que os olhos não vêem directamente, e dele podemos deduzir, por exemplo, a composição química da atmosfera e da superfície.
  Um outro instrumento importante foi o HASI (Huygens Atmospheric Structure Instrument), cujos termómetros ultra-precisos mediram a temperatura durante a descida até à superfície gélida que está a 188 graus negativos, a pressão (1.5 bar no solo), a condutividade eléctrica e pesquisaram (em vão) por vestígios de relâmpagos e trovões.

A baixa altitude é possível distinguir terras altas, com uma grande variedade de terrenos, e uma zona baixa, uniforme. Cortesia: ESA/NASA/JPL/University of Arizona.
  Para a aterragem foi escolhida uma zona de interface, a 10S, 180W, perto do que se pensa ser um continente, onde se sabia existirem vários tipos de terreno. Foi durante a descida em pára-quedas que, enquanto rodava, a câmara captou as imagens que nos chegaram. Ao contrário do que se esperava, a bruma estende-se até à superfície, e só as imagens abaixo de 25 km de altitude têm alguma nitidez. A 18km de altitude vemos uma rede de drenagem como as que observamos em sistemas fluviais terrestres, ligada a zonas extensas mais escuras que parecem ser terras baixas. A 8 km de altitude vemos o que parece ser a linha de costa, com uma separação nítida entre um terreno elevado, mais claro, e terras baixas. Outras fotografias mostram mesmo indícios de baixios, com leitos fluviais salpicados por possíveis depósitos de aluvião. Os contrastes entre zonas claras e escuras dão-nos pistas importantes para compreendermos a natureza da superfície. O globo de Titã é formado por uma mistura de rochas e gelo, mas quase toda a componente rochosa, mais pesada, deve encontrar-se no seu centro. Assim, as áreas mais claras podem ser gelo exposto, e as áreas escuras podem ser depósitos de partículas de bruma que caíram lentamente da atmosfera e que, com o passar das eras se acumularam no solo. Parte do interior, aquecido pelas forças de maré de Saturno, pode ser líquido. Uma das imagens mostra o que podem ser extrusões de gelo, água líquida vinda do interior que aflorou à superfície através de falhas e solidificou.
  O ponto de aterragem da sonda situa-se numa das zonas mais escuras e é provavelmente um leito lagunar ou de rio. A fotografia da superfície mostra uma paisagem preenchida por blocos de gelo arredondados, com dimensões de 15 a 20 cm. Estes seixos têm marcas de erosão na base, como os que se vêem na Terra em leitos de rios, indicando que foram arrastados por algum tipo de fluido que terá moldado a sua forma. Os espectros obtidos indicam claramente a existência de gelo misturado com outros compostos, mas ainda não foi possível identificar quais. Trata-se provavelmente de uma mistura rica em moléculas complexas provenientes da bruma atmosférica.
  A interpretação das imagens ainda está sujeita a debate, mas sabemos que os contrastes entre zonas claras e escuras advêm do relevo ou da composição, mas não podem ser atribuídos a sombras uma vez que não há luz directa a chegar à superfície. A difusão na atmosfera e a absorção pelo metano levam a que só 10% da luz recebida por Titã chegue à superfície.
  A existência de líquidos na superfície de Titã era uma conjectura antiga. À taxa actual de fotólise, apenas 10 milhões de anos seriam suficientes para esgotar todo o metano da atmosfera. Como a idade do Sistema Solar é de 4600 milhões de anos, teria de haver um reservatório de metano à superfície para reabastecer a atmosfera. Além disso, nas condições de temperatura e pressão do solo o metano é líquido, pelo que poderia formar rios e lagos. Assim, as imagens da Huygens vêm confirmar esta possibilidade, mostrando que houve num passado recente (à escala de poucos milhões de anos) líquidos à superfície, mas também levantar outra questão: porque não foram detectados líquidos directamente? Poderá acontecer que a formação de rios e lagos seja um fenómeno periódico ou episódico, ou simplesmente teremos visitado Titã pouco depois de se ter esgotado o reservatório de metano? Embora não sejam visíveis quaisquer líquidos, um dos instrumentos da sonda detectou a evaporação de metano no momento em que esta, aquecida pela fricção com a atmosfera, tocou o solo. É possível que o gelo da superfície seja poroso, como certas rochas, e que esteja embebido em metano, ou que este exista logo abaixo da superfície. A resistência da superfície medida durante o impacto da sonda mostrou que há uma crosta fina e dura, com poucos centímetros, a cobrir uma camada mais mole.

Panorama de 360o da região à volta do local da aterragem. À esquerda vê-se o que parece ser uma zona elevada. Cortesia: ESA/NASA/JPL/University of Arizona.
  A partir do que sabemos, podemos estabelecer um paralelo entre Titã e a Terra, em que o gelo, a água, o metano líquido e a bruma desempenham o papel da rocha, da lava, da água e do aluvião, respectivamente. Às condições de pressão e temperatura de Titã o gelo comporta-se como rocha, e poderá haver vários tipos de gelo. No interior o gelo derrete, e poderá ocorrer um vulcanismo frio que traz água líquida à superfície, solidificando rapidamente. O metano é líquido à superfície, podendo evaporar, formar nuvens e chover. A bruma atmosférica acumula-se em depósitos à superfície, sendo estes levados pelas chuvas para os rios e lagos. Blocos de gelo que se desprendem das margens são arrastados e moldados pela corrente.
  Com a missão Huygens ainda só começámos a compreender Titã. Mas já emergiu dos primeiros resultados uma nova visão, de um mundo muito mais parecido com a Terra do que pensávamos, e ao mesmo tempo tão diferente do nosso e de todas as outras luas geladas dos planetas gigantes. Como uma repetição de certos padrões gerais da natureza, ao vivo e a cores, mas com infinitas variações.


David Luz
CAAUL/OAL
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