Página - 1 2 3 4 5 6 7
 

8 de Junho de 2004: Vénus em Trânsito!

  No próximo dia 8 de Junho, a dança dos planetas oferecerá aos olhares avisados um belo e raro passo: um trânsito de Vénus, ou, por outras palavras, a passagem de Vénus em frente do disco solar, que em Lisboa será visível desde o nascer do Sol até às 12h25m (Hora Legal Portuguesa).

Fig. 1 - Diferentes configurações para os planetas inferiores (com órbitas interiores à da Terra) e superiores (com órbitas exteriores à da Terra).

  Em Astronomia, o termo "trânsito" aplica-se a situações em que um corpo orbitando um outro se interpõe entre este e o campo visual de um observador na Terra. Um eclipse solar, por exemplo, mais não é do que um trânsito da Lua. Por mero acaso, os diâmetros aparentes da Lua e do Sol são idênticos, e é por isso que se dão eclipses totais do Sol. Imediatamente se infere que os únicos planetas do Sistema Solar que poderão proporcionar trânsitos são aqueles cujas órbitas são interiores à da Terra, ou seja, Mercúrio e Vénus. Para designar a passagem destes planetas em frente ao Sol utiliza-se a expressão "trânsitos planetários". Para que se dê um trânsito planetário, duas condições têm que ser satisfeitas: o planeta deve estar em conjunção inferior (v. fig. 1) e próximo de um dos seus nodos orbitais. A projecção da órbita da Terra na esfera celeste é designada por eclíptica; o plano da órbita da Terra denomina-se, por conseguinte, plano da eclíptica. O plano orbital de Mercúrio faz com o plano da eclíptica um ângulo de 7º; para o plano orbital de Vénus, esse ângulo é de 3.3º . Os nodos orbitais são os pontos de intersecção das órbitas com a eclíptica. A conjunção inferior de Mercúrio dá-se, em média, em cada 116 dias, e a de Vénus em 584 dias; mais raras são as ocasiões em que, simultaneamente, os planetas estão próximos dos nodos orbitais, daí a raridade dos trânsitos planetários, sobretudo no caso de Vénus. Em média, dão-se 13 trânsitos de Mercúrio por século (o mais recente aconteceu a 7 de Maio de 2003, o próximo será a 8 de Novembro de 2006), e 4 trânsitos de Vénus em cerca de 243 anos (os trânsitos de Vénus dão-se geralmente em pares, sendo os trânsitos, em cada par, mediados por cerca de 8 anos; ao trânsito de 8 de Junho do ano em curso seguir-se-á um outro a 6 de Junho de 2012, que não será visível na Europa).

Fig. 2 - Efeito de paralaxe: observadores em latitudes diferentes observam Vénus em posições diferentes sobre o disco solar (o desenho não está à escala).

  O primeiro trânsito de Vénus da era do telescópio foi previsto para 6 de Dezembro de 1631 por Johannes Kepler (1571-1630), que não viveu o suficiente para o observar; de qualquer modo, ninguém o terá observado. O trânsito seguinte, que aconteceria a 4 de Dezembro de 1639, foi previsto com apenas um mês de antecedência por Jeremiah Horrocks (1619-1641). Horrocks e o seu amigo William Crabtree terão sido os únicos a observar um trânsito de Vénus no séc. XVII, e os primeiros a empregar telescópios para esse efeito. O interesse científico dos trânsitos de Vénus viria, no entanto, a sofrer um enorme incremento, graças ao astrónomo Edmond Halley (1656-1742). Em 1677, Halley encontrava-se na ilha de Santa Helena (no Atlântico Sul) a elaborar um catálogo das estrelas visíveis no céu austral. Tendo tido a oportunidade de observar um trânsito de Mercúrio, ocorreu-lhe que, para dois observadores significativamente afastados em latitude, a posição do planeta em trânsito sobre o disco solar seria diferente, por efeito de paralaxe (v. fig. 2). Medindo a paralaxe do planeta, poder-se-ia obter a paralaxe solar e a partir daí a distância Terra-Sol, denominada Unidade Astronómica e utilizada como unidade de medida no Sistema Solar.

Fig. 3 - Fotografia do trânsito de Vénus de 1882, obtida no âmbito de uma expedição americana ao Chile.

A Terceira Lei de Kepler (segundo a qual o cubo da distância média de um planeta ao Sol é proporcional ao quadrado do seu período orbital) fornece a escala relativa do Sistema Solar, bastando determinar a distância entre dois planetas ou entre um qualquer planeta e o Sol para a partir daí se determinar todas as outras distâncias. Como a paralaxe de Mercúrio é pequena, Halley propôs que se utilizasse o trânsito de Vénus (que, por estar mais próximo da Terra, tem uma paralaxe maior) para determinar a paralaxe solar. Para tal, observadores em diferentes latitudes deveriam registar a duração do trânsito. O astrónomo francês Joseph-Nicolas Delisle (1688-1768) propôs uma simplificação ao método: registar os momentos exactos do início ou do fim do trânsito. Gerou-se assim um grande interesse em torno dos trânsitos de Vénus que se seguiriam, em 1761 e 1769. Foram organizadas (nomeadamente pela França e pela Inglaterra) várias expedições para observar o fenómeno nas zonas mais propícias e apelou-se à colaboração internacional, tendo Delisle desempenhado aí um papel crucial. O trânsito de 1761 era visível em Portugal e foi observado por Teodoro de Almeida, no Porto, e Miguel Ciera, em Lisboa. Já no séc. XIX, em 1824, o astrónomo alemão Joahann Encke calculou, com base nos dados recolhidos por ocasião destes dois trânsitos, uma paralaxe de 8.5776 segundos de arco, o que faz uma Unidade Astronómica corresponder a 153 340 000 quilómetros. Os trânsitos de Vénus seguintes deram-se em 1874 e 1882, numa época em que entre as técnicas à disposição dos astrónomos já se encontrava a fotografia. Em Portugal, procurou-se organizar uma expedição para observar o trânsito de 1874 (Macau seria um destino possível), e os nomes de Frederico Augusto Oom e Campos Rodrigues, astrónomos do então Real Observatório Astronómico de Lisboa (ROAL, agora Observatório Astronómico de Lisboa, a casa que edita este boletim), e de Brito Capello, director do Observatório Infante D. Luíz (observatório geofísico), foram mesmo apontados pela Academia Real das Ciências como os observadores que fariam parte da expedição.
Trânsito Seguro

  Vénus terá um tamanho aparente de um minuto de arco e, para quem tenha boa visão, será observável como um pequeno ponto negro no disco solar. Trata-se, no entanto, de uma observação potencialmente perigosa. Os danos da observação directa do Sol não se resumem à sensação de ofuscação; a fixação prolongada do olhar no Sol acarreta, de facto, a queima da retina, que é irreversível. Nunca olhe directamente para o Sol, a não ser com óculos concebidos para o efeito e homologados pelas autoridades sanitárias (independentemente da marca ou qualidade das lentes, não utilize óculos de Sol vulgares). Se utilizar binóculos ou telescópios, empregue os filtros apropriados, instalados de maneira correcta, ou (opção mais segura) projecte a imagem do Sol numa superfície branca. Para mais informações, consulte www.oal.ul.pt.

Chegou-se a adquirir material e a desenvolver dispositivos especiais para fazer fotografia, tendo mesmo Campos Rodrigues inventado um aparelho que facilitaria a renovação das chapas fotográficas. No entanto, a expedição seria cancelada, pois uma proposta de lei que solicitava um orçamento até onze contos de réis para a realização da expedição não foi votada! Em 1882, novamente se goraram as expectativas de realizar uma expedição, desta vez com destino a Lourenço Marques (actual Maputo, Moçambique). Valeu o facto de o trânsito ser, nesta ocasião, parcialmente visível em Lisboa, tendo sido observado no ROAL por Frederico A. Oom, Campos Rodrigues e Alves do Rio, e também no Observatório do Infante D. Luíz. Dos dados recolhidos à escala internacional por ocasião destes dois trânsitos, o astrónomo Simon Newcomb (1835-1909) obteve, em 1890, um valor de 8.79 segundos de arco para a paralaxe solar, o que faz a Unidade Astronómica recair para, aproximadamente, 149 342 300 quilómetros.
  O valor actualmente estabelecido para a Unidade Astronómica é de 149 597 870 quilómetros. Outros processos foram empregues na determinação da paralaxe solar, nomeadamente a observação de Marte e do asteróide Eros em oposição (ver fig. 1), a detecção de ecos de radar e a detecção de sinais de rádio emitidos por sondas espaciais nas imediações de Vénus. O rigor atingido, sobretudo com este último método, fez diminuir a relevância científica dos trânsitos planetários. No entanto, estes constituem ocasiões propícias para ensaiar métodos de detecção de planetas extra-solares. Não há seguramente testemunhas vivas do último trânsito de Vénus, o de 1882, e o de 2012 não será visível da Europa; os seguintes dar-se-ão em 2117 e 2125. Portanto, perfila-se uma oportunidade a não perder! Resta esperar que, na manhã do próximo dia 8 de Junho, as nuvens não preguem partidas, como aliás fizeram a ávidos observadores no passado...


Pedro Raposo
OAL

© 2004 - Observatório Astronómico de Lisboa