"Acho que fui editor toda a minha vida". Guilherme Valente (GV) resume assim o seu percurso profissional. Desde muito jovem que referia e discutia com os seus amigos os livros que o apaixonavam, promovendo a sua leitura.
Nasceu e viveu a sua adolescência em Leiria, uma adolescência muito rica de um convívio "com pessoas muito interessantes", num tempo em que a preocupação com a política era um imperativo intelectual e cívico. Começou a sua actividade profissional na editora Europa-América, "uma escola fantástica onde aprendi muito". Conheceu, então, o Professor Sedas Nunes, "um dos professores mais brilhantes do nosso país", com quem colaborou, durante muitos anos, na publicação da revista Análise Social, tendo tido o benefício intelectual e humano dessa amizade que o marcou profundamente. Simultaneamente continuou o seu trabalho no campo da edição, ligando-se a outras editoras: à D. Quixote de Snu Abecassis e posteriormente, após a morte desta, à Editorial Presença.
Guilherme Valente liga a criação da Gradiva a um problema que desde sempre o preocupou: porque não se desenvolve Portugal?
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"Pensei que a democracia se traduziria logo na mudança. Adam Smith dizia que a liberdade traria tudo por acréscimo, mas o que é a liberdade? Hoje temos instituições democráticas que são uma condição necessária para o desenvolvimento, mas falta ainda, significativamente, interiorizar os valores da democracia, construir uma cultura democrática."
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Ora os valores da democracia, assentes na liberdade, são, considera Guilherme Valente, os valores da cultura científica, os valores da modernidade. Como a história ilustra, a democracia e a ciência cresceram juntas, a democracia é uma condição para o desenvolvimento da ciência, a ciência exercita os valores, os comportamentos democráticos, alimenta a democracia. E assim criou a Gradiva, com o objectivo principal, muito concreto, de contribuir para a promoção da cultura científica, para intervir culturalmente na sociedade portuguesa, objectivo a que se vem dedicando com uma persistência e uma convicção singulares.
Qual tem sido o contributo da Gradiva na promoção da cultura científica?
GV - É reconhecido e verificável que a Gradiva, com todos os amigos envolvidos neste projecto, está na origem do despertar para a Ciência verificado em Portugal nos últimos 18 anos. Publicámos, com a ajuda desses amigos, muitos livros, promovemos e realizámos inúmeras iniciativas, intervenções e conferências em Universidades, associações diversas, livrarias, centros de cultura, etc., entrevistas e artigos na comunicação social. A colecção Ciência Aberta, considerada internacionalmente uma colecção de referência no género, inclui mais de uma centena de títulos. Outras colecções, Trajectos Ciência, Aprender Ciência/Fazer Ciência, foram ao encontro ou criaram um público que muitos diziam não existir, ou, pior ainda, ser impossível surgir em Portugal. Provámos que os Portugueses não são menos dotados para a ciência do que qualquer outro povo, que o interesse pela cultura científica existe e pode ser promovido entre nós. Do mesmo modo, o grande êxito da colecção O Prazer da Matemática (menos referida pelo facto da Ciência Aberta ter sido a pioneira) veio mostrar que é possível suscitar e criar o interesse por esta disciplina num país onde se diz que se odeia tanto Matemática.
No seu entender, a que se deve esse "ódio" pela Matemática?
GV - É, mais uma vez, um problema cultural. O horror à Matemática e o horror à Ciência começa logo a ser construído nos primeiros anos de escolaridade, direi mesmo no seio das famílias. Foi essa mesmo a minha experiência pessoal. Lembro a tradicional dicotomia do "jeito para as ciências, jeito para as letras", que contribuiu decisivamente não apenas para um grande empobrecimento intelectual pessoal de gerações e gerações de portugueses, mas marcou tragicamente a cultura, a sociedade portuguesa. Nós temos excelentes matemáticos e excelentes físicos que vão lá para fora e "dão cartas", alunos que vão para as mais selectivas e exigentes universidades americanas, aí se distinguindo.
Um notável cientista português, Ricardo Jorge, o que deu nome ao instituto de análises, dizia que a sociedade portuguesa é uma sociedade "cienticida", no sentido de homicida, que mata a Ciência. Mas por que mata a Ciência? Porque os valores da cultura portuguesa são valores contrários aos da cultura científica, que são, afinal, os valores do desenvolvimento. Somos um povo que constrói uma imagem iludida de si próprio. Por isso detestamos a avaliação. A avaliação põe em causa essa imagem idealizada que fazemos de nós próprios. Ora, repare que Ciência é avaliação, Ciência opõe-se a aparência e nós somos uma cultura da aparência. Se me pedir para definir em duas palavras a cultura portuguesa, digo-lhe que somos uma cultura da aparência e da desconfiança. Da desconfiança precisamente por sermos uma cultura da aparência. A cultura científica é uma cultura da confiança, do rigor, da verificação, da assunção do erro.
Mas essa desconfiança é algo que "nós" não assumimos por natureza?
GV - Não é por natureza...é por cultura! É tão endémico na nossa cultura que até parece, mas não é, uma segunda natureza. Não há segundas naturezas... Interessante é descobrir a que se deve a persistência desta cultura de séculos, desta inibição para o desenvolvimento que até parece um destino fatídico. As culturas não são construções estáticas, definitivas, mas estão, pelo contrário, em permanente reelaboração. Quando se diz: devemos manter a nossa identidade cultural ... isso é um disparate! Devemos procurar preservar o bom e enfrentar o mau da nossa identidade cultural, o que bloqueia o nosso desenvolvimento e progresso. E é a escola a sede privilegiada onde podemos, através de um esforço consciente e voluntário, enfrentar o pior de nós e valorizar e integrar o melhor que for emergindo. Por isso tenho procurado intervir no combate da educação.
Qual o papel de um Editor?
GV - O Editor é alguém que, independentemente da sua especialidade académica ou dos seus interesses intelectuais específicos, tem de ter um background cultural, interesses culturais, que lhe permitam dialogar com os especialistas de várias áreas. No meu caso, a minha formação académica de base, a Filosofia, terá também ajudado. Foi através da Filosofia, da filosofia e da teoria da ciência, que também terei chegado, porventura, à descoberta do significado da cultura científica, à sua ligação com a experiência democrática, a modernização e o desenvolvimento. E comecei a interessar-me por livros chamados de divulgação científica, mas que deveríamos designar mais adequadamente livros de divulgação da Ciência e promoção da cultura científica. Na colecção Ciência Aberta estão publicados livros que, mostrando sempre como trabalha o cientista e avança o conhecimento científico, ilustram os diferentes tipos de obras incluídas no género: livros que tratam, de uma forma tão acessível quanto possível, os conteúdos, os avanços, os problemas, de cada uma das áreas da Ciência; livros que dão conta das últimas especulações e dos desafios que se colocam nos diversos campos do conhecimento científico; livros em que o autor aponta novos caminhos, ensaia teorias que ainda não são Ciência - por isso estes livros têm o mesmo interesse para os especialistas e os não especialistas, por isso fascinam e despertam vocações em tantos jovens.
O exercício do Editor distingue-se do trabalho do especialista, é mais abrangente, tem de perceber quais são as necessidades culturais do país, não pode confundi-las com os seus interesses intelectuais e académicos próprios. É, tal como o professor, um agente cultural fundamental. Diz-se frequentemente que um autor marcou uma geração, mas eu acho que se pode dizer com mais rigor que há editores que marcaram gerações. A minha geração foi marcada por um ou dois editores. Quando vejo o êxito que a colecção Ciência Aberta teve, a quantidade de jovens que me escrevem a dizer que despertaram para a Ciência por causa dos nossos livros, tenho a esperança muito gratificante, de que o nosso trabalho, a nossa vida, não estejam a ser inúteis.
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Outro objectivo da Gradiva foi suscitar a produção nacional, encorajando e desafiando os nossos cientistas e professores a publicar. Editámos obras de grande qualidade de vários autores portugueses. Não tantos como gostaríamos. O problema que enfrentamos é esse ambiente anti-científico da sociedade portuguesa que referi. Nos meios de comunicação, por exemplo, apesar da mudança que se vem verificando e da boa vontade de alguns jornalistas - eles próprios vítimas, na sua generalidade, da educação literata ainda dominante - a Ciência e a cultura científica não têm ainda a importância e o espaço que, está provado, corresponderia ao interesse de um número crescente de leitores.
Há então no seu trabalho de Editor uma preocupação educativa?
GV - É preciso levar a cultura científica para o ensino. Não apenas o ensino das ciências, que, evidentemente, sempre houve, mas a cultura científica, na acepção que tenho vindo a explicar. Uma cultura que esteja presente no ensino de todas as disciplinas, nas relações entre os parceiros educativos, que seja a cultura da escola.
Acontece, no entanto, que a ideologia criminosa, as concepções pedagógicas obsoletas que dominam o sistema de ensino português há mais de 20 anos, que têm continuado a condenar gerações de crianças portuguesas, muito particularmente as provenientes dos meios sociais mais desfavorecidos, à ignorância, à pobreza e à exclusão, são o inverso dessa cultura libertadora e modernizadora. Nada mudará no nosso ensino e, portanto, na nossa realidade social, na participação política, na economia e no trabalho, na qualidade de vida, na realização humana dos Portugueses, se essa ideologia e essas concepções não forem decididamente enfrentadas e varridas. Iludidos e atemorizados pelo poder totalitário que tem dominado o sistema, os professores, que são, com os alunos, as vítimas imediatas do sistema, parecem agora começar a compreender o logro de que têm sido alvo e a ter coragem para reagir à lavagem cerebral que suportaram todos estes anos. O que é escandaloso e intolerável é que alguns dos principais responsáveis políticos pela tragédia continuem a tentar impedir a mudança, bloquear a construção de um sistema de ensino novo, adiar a emergência de uma sociedade civil digna desse nome: informada, crítica, participativa. Só um ensino público de qualidade, exigente e responsabilizador, pode conduzir a este objectivo.
O ideal democrático realiza-se no tratamento justo de todos os cidadãos e na determinação de levar tão longe quanto possível as potencialidades de cada um, não reduzi-las à sua mais baixa expressão. O país precisa de promover o mérito e a excelência, pois com isso toda a sociedade vai beneficiar. Quando o Figo joga bem, todos nos sentimos gratificados. Quando um cientista português realiza um trabalho digno de nota, todos nos identificamos com o seu sucesso. O que choca e ofende é a injustiça, é a promoção de quem não merece. Nas sociedades, como a nossa, em que o reconhecimento do mérito começa por não ser prática corrente na própria escola, o que acontece é emergência de outras hierarquias, essas sim ilegítimas e socialmente perversas. Reconhecer o mérito de alguém é gratificante para todos. Os verdadeiros centros de poder, são hoje, cada vez mais, centros de conhecimento. Se não tivermos centros de excelência, se não formos um povo qualificado, de que independência poderemos falar?
Mas será que os portugueses querem mudar?
GV - Eu escrevi há pouco tempo um artigo a que dei o título "Para se construir um país constrói-se primeiro uma escola". A questão já não é se queremos ou não mudar. A questão, hoje, é que temos mesmo de mudar. Porque não se vê no horizonte expediente que possa permitir que continuemos a ser o que temos sido.
Indique um livro da sua escolha.
GV - Há um livro que animou o projecto da Gradiva desde o início. "Cosmos", de Carl Sagan. É um livro exemplar cuja leitura deve ser obrigatória na escola. Este livro foi levado para as escolas por muitos professores resistentes e despertou a vocação de inúmeros jovens. É um livro admirável, sobre a Ciência, sobre a tolerância, sobre os valores da cultura científica. Um livro sobre o melhor da nossa Humanidade.
Eugénia Carvalho
CAAUL/OAL
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