As Nuvens de Magalhães
Neste ano de 2019 comemoram-se os 500 anos da partida da expedição de Fernão de Magalhães, a primeira viagem à volta do nosso planeta Terra (1519-1522).
A crónica da viagem [1] foi escrita pelo cavaleiro veneziano Antonio Pigafetta, um dos 18 sobreviventes que efetivamente deram a volta ao Mundo, e que regressaram numa única nau em setembro de 1522, entre os cerca de 270 tripulantes que tinham partido a bordo de 5 navios três anos antes, em setembro de 1519. Em janeiro de 1521, Pigafetta menciona na sua crónica que “na direção do polo Sul celeste se vêem duas aglomerações nebulosas de estrelas, no meio das quais se encontram duas estrelas brilhantes com movimento pouco aparente que indicam o polo Sul“. As duas aglomerações nebulosas são as famosas Nuvens de Magalhães, enquanto que as duas estrelas se pensa serem as β Hyi e γ Hyi, as duas estrelas mais brilhantes da constelação do Hydrus (Hidra macho ou Hidra pequena), que não deve ser confundida com a constelação da Hidra. Na realidade estas estrelas não estão no polo mas, embora afastadas de mais de 10°, são as mais brilhantes da região polar. De facto as estrelas da região polar são de fraca magnitude (a estrela polar austral é a σ Oct da constelação do Octante com declinação -88° 57′ mas com magnitude de apenas mv = 5.47), e entre as 5 constelações polares (Octante, Montanha da Mesa, Camaleão, Ave do Paraíso e Hidra macho) existe apenas uma estrela acima da terceira magnitude (exatamente a β Hyi com magnitude mv = 2.79 e declinação -77° 15′). É curioso notar que a falta de estrelas no polo Sul foi já mencionada nos Lusíadas (Canto V, Estrofe 14):
“Já descoberto tínhamos diante,
Lá no novo Hemisfério, nova estrela,
Não vista de outra gente, que ignorante
Alguns tempos esteve incerta dela.
Vimos a parte menos rutilante,
E, por falta de estrelas, menos bela,
Do Polo fixo, onde ainda se não sabe
Que outra terra comece, ou mar acabe.”
As estruturas mais proeminentes visíveis a olho nu no hemisfério Sul são as Nuvens de Magalhães, consideradas as joias do céu austral são duas galáxias anãs irregulares, satélites da nossa Galáxia. A maior denomina-se Grande Nuvem de Magalhães (LMC) e a mais pequena é a Pequena Nuvem de Magalhães (SMC). Ambas têm uma barra central e na LMC distingue-se também um braço espiral. A LMC está a cerca de 160 000 anos-luz de distância, ocupando uma distância angular no céu de 10° e tem uma magnitude mv = 0.9, enquanto que a SMC está a cerca de 200 000 anos-luz de distância, ocupa uma distância angular no céu de 4° e tem uma magnitude mv = 2.7. Estas duas galáxias fazem parte do chamado Grupo Local, que inclui também a nossa galáxia e a grande galáxia espiral de Andrómeda (M31), e que contém um total de 37 objetos conhecidos, distribuídos numa extensão de aproximadamente 4 milhões de anos-luz. Estas galáxias são ricas em gás e poeira e contêm muitos enxames estelares, nebulosas e zonas de forte atividade de formação estelar. A Supernova 1987a, que foi a supernova mais próxima a ter ocorrido recentemente, localizou-se na LMC.
As Nuvens de Magalhães, tendo declinação de cerca de -70°, são já visíveis no hemisfério norte em pontos abaixo da latitude de 15° N. De facto o primeiro registo astronómico da sua observação é o do astrónomo persa Al-Sufi no seu Livro das Estrelas Fixas no século X, referindo que é visível no sul do mar Vermelho [2]. No entanto, para as observar altas no céu, é necessário estar no hemisfério Sul, onde eram já conhecidas dos povos indígenas. Durante as navegações europeias dos séculos XV e XVI, houve oportunidade de observar o céu austral, descobrir novas estrelas, formar novas constelações, encontrar novos pontos de referência para a navegação e também de observar as Nuvens de Magalhães. Antes da viagem de Magalhães, é sabido que as nuvens eram já conhecidas e usadas na navegação pelos pilotos portugueses sendo conhecidas por Nuvens do Cabo (em referência ao cabo da Boa Esperança). Há também uma referência enigmática – “Vidi in eo celo tres canopos, duos quidem claros, tertium obscurum” – no livro Mundus Novus (1503) de Américo Vespucci, a propósito da sua segunda viagem feita ao serviço de Portugal [3]. Os dois “canopos” claros seriam uma referência às Nuvens, sendo a palavra “canopo” interpretada como uma região do céu. No entanto este documento contêm uma mistura de dados corretos e errados em relação à quantidade e localização das estrelas do hemisfério austral, e está envolto em alguma polémica, como aliás alguns aspetos das próprias viagens de Américo Vespucci. O primeiro mapa do céu austral em que as Nuvens são representadas parece ser o do florentino Andrea Corsali, um simples esboço numa carta dirigida a Julião de Médicis em 1516, a partir das observações que fez numa viagem de Lisboa à Índia a bordo de uma nau portuguesa.
Vimos assim que a viagem de Magalhães não foi a primeira a observar nem mesmo a registar a observação das Nuvens. É também curioso notar que o registo tenha sido feito apenas em janeiro de 1521, em pleno Oceano Pacífico, quando a expedição já se encontrava no hemisfério Sul desde novembro de 1519. Quanto à razão do nome de Nuvens de Magalhães se ter popularizado, não é exatamente conhecida. Uma hipótese é a que teria sido outro navegador português, Nuno da Silva, a estar na origem deste facto [4]. O navio deste capitão português foi capturado em batalha em Cabo Verde por Francis Drake no início da sua viagem de circum-navegação em 1578. É sabido que Nuno da Silva acompanhou Francis Drake na sua viagem guiando-o nos mares do Sul. Teria também apresentado as nuvens a Francis Drake como sendo as nuvens de Magalhães, o que teria introduzido o nome no mundo de língua inglesa e na linguagem corrente. No entanto o nome demorou séculos a tornar-se universalmente aceite e continuaram a ser designadas como nuvem grande e nuvem pequena nos principais atlas do céu publicados nos séculos seguintes [5], como o Uranometria de Bayer (1603), o Planisphere Contenant les Constellations Celestes de Lacaille (1752), ou o Uranografia de Bode (1801).
Bibliografia
[1] A. Pigafetta, “Primer viaje en torno do globo”, Calpe (1922)
[2] R. H. Allen, “Star names and their meanings”, G.E.Stechert (1899)
[3] E. Dekker, ” The Light and the Dark: A Reassessment of the Discovery of the Coalsack Nebula, the Magellanic Clouds and the Southern Cross”, Annals of Science 47, 529 (1990)
[4] J. C. Houzeau, “Le ciel austral et les premiers navigateurs des mers du Sud”, Ciel et Terre 1, 481 (1885)
[5] E. B. Knobel, “On Frederick de Houtman’s Catalogue of Southern Stars, and the Origin of the Southern Constellations”, MNRAS 77, 414 (1917)
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